Assombrada pela ideia de que o coração dos filhos poderia parar a qualquer instante, a corretora de seguros Mila Miranda Costa, 35 anos, aboliu o berço. À noite, os gêmeos Enzo e Benjamin, 2 anos, dividiam a cama com ela. Era aconchego de mãe de um lado, parede do outro.
Foi assim até a véspera do 8 de março, o dia em que a força de muitas mulheres se somou para que o pequeno Enzo recebesse um coração novo.
Em um caso inédito na história do Instituto do Coração (InCor), em São Paulo, e sem registro semelhante no Brasil, gêmeos nasceram com a mesma doença, desenvolveram sintomas simultaneamente e foram inscritos na fila do transplante.
A cardiomiopatia dilatada é uma doença do músculo cardíaco. O coração perde a capacidade de bombear o sangue adequadamente.
Sem oxigênio e nutrientes circulando pelo organismo, os bebês sofrem com falta de ar, cansaço e dificuldades de ganho de peso. Nos casos graves, o transplante é o último recurso.
Quando soube que os filhos corriam risco de morte, Mila deixou Imperatriz, no Maranhão, para tentar salvá-los em São Paulo. A mãe dela, Maria, embarcou junto, para o que desse e viesse.
Instaladas em casas improvisadas, esperavam pela cirurgia havia mais de um ano. Na madrugada de 8 de março, o celular tocou.
Mila não reconheceu o número. Quase não atendeu. Ficou sem ação ao ouvir o aviso do hospital de que um possível doador para Enzo havia sido identificado. Chorou de alegria e de medo.
Enquanto ela, a mãe e os filhos inquietos cruzavam a cidade para chegar ao InCor, Mila pensava na mulher que aceitou doar o coração do filho que acabara de perder.
Um bebê de 1 ano e sete meses, vítima de acidente de trânsito. Tentava imaginar o tamanho da dor e da generosidade daquela mãe. Se Enzo vivesse, teria sido pelo amor de uma desconhecida.
Os cirurgiões Luiz Fernando Caneo (à esq.) e Raquel Massoti preparam o novo coração, pouco antes de colocá-lo no peito do bebê Enzo. (Foto: Cristiane Segatto/UOL VivaBem)
No início da tarde do dia 8, Enzo dormia, agarrado ao pescoço da mãe. Mila relutava em soltá-lo, mas havia chegado a hora da cirurgia. “Fiz o sinal da cruz na testa dele e pedi à médica que o devolvesse vivo”.
No centro cirúrgico do 3º andar, a sala estava pronta.Enquanto Enzo era preparado para o transplante, a médica Raquel Massoti transportava o coraçãozinho que ela mesma extraiu do peito do doador, na capital de outro estado.
Para voltar ao InCor, enfrentou uma hora e meia em voo fretado até o Aeroporto de Congonhas e uma carona no helicóptero da Polícia Militar.
Quando chegou, a equipe estava a postos. As mulheres eram absoluta maioria. Da maleta térmica sairia um órgão pequenino, saudável, perfeito. Uma preciosidade não muito maior que um ovo de galinha.
Doente e inchado, o coração extraído de Enzo tinha o dobro do tamanho normal. Ficaria abandonado em uma vasilha inox até o final da cirurgia. Destituído, em poucas horas, de qualquer traço de nobreza.
Todas as atenções se voltariam ao novo protagonista: o coração que veio de longe para dar esperança à outra família. Sobre a palma da mão de Raquel, ele era alcançado pela pinça manejada com destreza pelo cirurgião Luiz Fernando Caneo.
Concentrado, ele se comunicava com a equipe pelo olhar. Palavras, só as essenciais, ditas em tom suave como o som sintonizado na Rádio Alpha.
Tocava You’ve got a friend enquanto Caneo e Raquel, debruçados sobre o peito diminuto do bebê de 85 cm, se dedicavam à delicada tarefa de religar artérias e veias.
Pouco depois das 17 horas, a anestesiologista Filomena Galas perguntou:
— Abriu a aorta?
— Abriu, professora.
— Está batendo lindamente?
— Está.
Era o primeiro sinal de que o coração havia voltado a funcionar. O segundo, ainda mais contundente, veio quando a máquina de circulação extracorpórea (que faz o papel do coração e dos pulmões) foi desligada. O novo órgão já conseguia gerar pressão suficiente para que o sangue circulasse em todo o corpo.
Era a melhor das notícias: a cirurgia havia dado certo.
Caneo parecia aliviado. “Antes de extrair o coração de alguém, penso que não posso falhar. Para um transplante acontecer, todas as etapas precisam dar muito certo”, disse. “A gente só sossega quando vê o paciente recuperado e em casa”.
Ao final da cirurgia, Raquel se largou sobre uma cadeira encostada na parede da sala. É preciso ser forte para lidar com o peso da responsabilidade exigida dela em todas as horas daquele Dia Internacional da Mulher. Encerrou a jornada com as pernas doloridas e o olhar de quem sente que fez a coisa certa.
Enzo e a mãe Mila na UTI pediátrica do InCor, seis dias depois do transplante. Enquanto ele se recupera, o irmão gêmeo segue na fila. (Foto: Cristiane Segatto/UOL VivaBem)
Seis dias depois, em um dos leitos da UTI pediátrica, Enzo tinha a expressão tranquila. Olhava fixamente nos olhos da mãe, enquanto recebia amor e cafuné. Depois do transplante, começa uma nova fase de muitos cuidados.
Nesses casos, o paciente precisa tolerar o novo órgão. Os exames que indicam se há risco de rejeição existem, mas não são perfeitos. Às vezes, um transplante que tem tudo para dar certo é sucedido por complicações no pós-operatório.
“É preciso haver um casamento entre o doador e o receptor. É como se fosse uma mágica, um milagre”, diz a cardiopediatra Estela Azeka, responsável pela área clínica do Programa de Transplante Infantil do InCor.
Enquanto Enzo segue em boa recuperação, Mila pensa se chegará a vez de Benjamin. Não coube a ela enfrentar o dilema de escolher qual filho salvar. Embora Benjamin tenha sido inscrito na fila antes de Enzo, os médicos consideraram fatores clínicos (entre eles uma virose) e decidiram que o receptor deveria ser Enzo.
Mila sabe que o aparecimento de dois corações compatíveis com os gêmeos seria algo incomum, extraordinário.
“Há poucas doações de órgãos para crianças e, especialmente, para bebês”, diz Roberto Kalil Filho, presidente do Conselho Diretor do InCor. “Não podemos perder sequer uma oportunidade de captação, esteja o órgão onde estiver”.
Por isso, nos últimos dez anos, o InCor investiu em uma estrutura de captação, com logística e meios de transporte que permitem chegar até em regiões de fronteira e trazer os órgãos a tempo de serem aproveitados.
Cada transplante é o resultado do trabalho de cerca de 50 pessoas (funcionários administrativos, equipe do laboratório de imunologia, clínicos, cirurgiões, enfermeiras etc).
Apesar dessa estrutura, metade das crianças inscritas na lista de transplante morre antes de conseguir um órgão. Benjamin segue na espera. O que conforta a família é saber que ele não está tão debilitado. Anda, se alimenta, brinca, apesar de ter o coração seriamente comprometido.
“Isso me enche de esperança”, diz Mila. Os bebês ainda não falam, mas Benjamin se faz entender. Procura pelos cantos da casa, mas não encontra o irmão.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL
Cristiane Segatto – ViverBem – UOL – 27/03/19
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